Texto I
A escola então era risonha e franca? Naquele ano de 1919, em Fortaleza, a nossa rua se chamava do Alagadiço: era larguíssima, uma longa sucessão de chácaras com jardim à frente, imenso quintal atrás. (...)
(l 5) Do outro lado da rua, defronte ao poste do bonde, ficava a escola pública da Dona Maria José. (...) Nela estudava o meu tio Felipe, que era quase da minha idade. (...) E eu, que chegara um mês antes do Pará, tinha loucura pra freqüentar a escola, mas ninguém consentia. (l 10) Minha mãe e meu pai alimentavam idéias particulares a respeito de educação formal: desde que eu já sabia ler aprendi sozinha pelos cinco anos e tinha livros em casa, jornais, revistas (O Tico-Tico!), o resto ficava para mais tarde. Eu então fugia, atravessava o (l 15) trilho para espiar a escola. Principalmente nos dias de sabatina, quando a meninada toda formava uma roda, cantando a tabuada, a professora com a palmatória na mão. Primeiro era em coro, seguido: 6+6, 12! 6+7, 13! O mais difícil era a tabuada de multiplicar, principalmente nas casas de sete pra cima e entrando no salteado:(l 20) 7x9, 56; 8x9, 72! Aí a palmatória comia e os bolos eram dados pelo aluno que acertava, corrigindo o que errava. E eram aplicados na proporção do erro. Tabuada de sete a nove era fogo. O pior era um aluno grandalhão iria (l 25) pelos 14 anos que não acertava nunca. Chegando a vez dele, a roda cantava: 8x7? A roda esperava e ele gaguejava, ficava da cor de um pimentão e começava a chorar. Palmatória nele. Eu, que espionava da janela e já tinha aprendido a tabuada, de tanto ver sabatina, soprava (l 30) de lá: 56! Dona Maria José, se ouvia, levantava os olhos pra cima e até sorria. Mas o pobre nunca entendia o sopro. Uma vez caiu de joelhos. Mas não perdoavam: bolo nele! E no dia seguinte ele vinha pra aula de mão amarrada num pano, sempre sujo. (l 35) As pessoas são cruéis. Menino é muito cruel. Agora me lembrei que chamavam o coitado de ?é Grandão. Nunca deu pra nada, nem pra caixeiro de bodega não conseguia anotar direito as compras no borrador. Ele mesmo, mais tarde, nos contou isso.
(l 35) (l 40)Por isso me ficou a convicção, lá no fundo da alma: só se pode mesmo vencer na vida aprendendo tabuada de cor e salteado. Principalmente as casas altas de multiplicar.
QUEIRO?, Rachel de. As terras ásperas Crônicas.
S. Paulo: Ed. Siciliano, 1993.